por: Aron Belinky*
Soa como clichê, é imagem algo desgastada, mas o fato é que em 1969, quando chegamos à Lua e de lá observamos nosso planeta, algo começou a mudar em nossas mentes. Porém, apesar da contundente imagem na televisão e nas páginas de revistas e jornais, a vida real continuou a mesma. Afinal, éramos meros 3,6 bilhões de pessoas. Não pensávamos em nossa “pegada ecológica”, mas, se o fizéssemos, veríamos que só 70% da capacidade da Terra era utilizada. Como caubóis, víamos um vasto mundo a ser ocupado e usufruído sem receio. Buscávamos nosso oeste apoiados pelas descobertas da ciência. Em apenas 40 anos, tudo mudou.
Hoje somos quase 7 bilhões de seres humanos, e tiramos da Terra 30% mais do que ela pode dar, exaurindo rapidamente o patrimônio de cuja renda dependemos. Descobrimos que já não somos caubóis, mas astronautas. Vivemos isolados numa grande nave, com recursos finitos e limitado espaço para dejetos. A realidade que conhecíamos - mas não sentíamos - agora se impõe, sob a forma de mudanças climáticas, montanhas de lixo, conflitos por água, petróleo e outros recursos.
Existem saídas para este impasse? Certamente sim, e somos capazes de construí-las, apesar dos enormes obstáculos a superar. Um deles, talvez o maior, é o desafio institucional, do qual pouco se fala. A imagem da Terra vista do espaço revela, também, que o mundo não tem fronteiras. E este é mais um dado da realidade que ainda insistimos em ignorar. Os 192 países que hoje compõe a ONU, nada mais são que invenções humanas, criadas há poucas centenas de anos. Conceitos hoje quase sagrados - como pátria e soberania nacional – só foram consolidar-se em meados do século XVII, com a Paz de Westfália. Foi nesse conjunto de tratados que, finalmente, os potentados da nobreza européia, incluindo o Sacro Império Romano-Germânico, reconheceram mutuamente seus respectivos poderes, estabelecendo o que hoje chamamos de Estados nacionais: parcelas do planeta sobre as quais existiria uma, e apenas uma, autoridade central, soberana. O tempo passou, e a globalização atual torna cada dia mais evidente que falta algo nesse modelo: falta combinar como pilotaremos nossa nave, nosso planeta sem fronteiras – sem esquecer, obviamente, a autonomia de cada país.
Além de elementos naturalmente globais – como o clima, as aves migratórias e os vírus – temos hoje criações globais humanas, como a poluição, os mercados, as telecomunicações e a cultura de massa. Já sentimos na pele a necessidade de enfrentar unidos os desafios planetários. Mas, para isso, dispomos apenas de instituições nacionais ou, na melhor das hipóteses, de um sistema internacional. O problema: ele não é de fato global, acima das nacionalidades, pois apenas junta países, que continuam inevitavelmente enredados por suas agendas nacionais, quando não reféns da desonestidade ou egoísmo de lideranças locais. Os tropeços e impasses na recente conferência do clima – a Cop15, em Copenhague – são o mais recente e dramático exemplo desse cenário.
A necessidade de instituições verdadeiramente globais é evidente. Mas construí-las será um desafio gigantesco. A crise de representatividade dos Estados nacionais e dos políticos que os dirigem é gritante, no mundo todo. Mas confiar apenas na “mão invisível” do mercado, sem regulamentações, também é perigoso, como mostrou a recente crise financeira que nasceu dos exageros de Wall Street. Turbinadas pelas modernas tecnologias da informação, navegando no espaço criado pela internet, iniciativas mundiais de cooperação e articulação são cada vez mais freqüentes. Elas mesclam Estados nacionais com representantes de segmentos auto-organizados da sociedade planetária – como empresários, investidores, cientistas, trabalhadores, consumidores e ONGs. Um exemplo disso é a ISO 26.000, norma internacional de responsabilidade social que já está praticamente pronta e deve ser publicada em finais de 2010. Ela representa um magnífico passo rumo à globalização 2.0.
Trabalhando juntas num processo altamente inovador, centenas de pessoas de todo o mundo dedicam-se, há mais de cinco anos, a compilar as expectativas embutidas nos acordos internacionais produzidos pelo sistema Nações Unidas, e a combiná-las com as mais consagradas práticas da boa gestão administrativa. O resultado é um guia de diretrizes inédito, com o qual qualquer organização – empresarial ou não – pode compreender o que espera dela a comunidade global, obtendo ainda
orientação sobre como aplicar essa conduta no seu dia-a-dia.
Como este da ISO 26.000, vários outros exemplos demonstram que está em plena construção um novo paradigma, uma cidadania global. Que este é o caminho, não há dúvida. Em que resultará, é uma pergunta ainda em aberto.
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*Aron Belinky (aron@ecopress.org.br) é coordenador executivo da campanha TicTacTicTac no Brasil, e representante das ONGs de países em desenvolvimento no comitê redator da ISO 26000 (publicado na revista “Veja” de 30/12/09)
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